Servidor público e a restituição de valores recebidos indevidamente

São bastante comuns casos nos quais os servidores públicos, ativos ou aposentados, recebem parcelas de remuneração ou proventos a maior, de forma indevida, por algum equívoco administrativo. Na esmagadora maioria destes casos, o servidor acredita plenamente que tais valores eram mesmo devidos, e acaba surpreendido por notificação sobre o desconto ou a necessidade de sua devolução.

A dúvida imediata é: “devo restituir esse dinheiro?”. A resposta sofreu alterações recentemente, eis que a matéria tem sido bastante debatida nos tribunais, e em especial os tribunais superiores.

No caso dos servidores públicos federais, a Administração se vale da redação do artigo 46, da Lei 8.112, de 1990, para tentar proceder às reposições, inclusive com desconto em folha. O dispositivo apresenta a necessidade de comunicação prévia ao servidor público, a viabilidade de parcelamento do valor que deverá ser reposto e a hipótese de reposição em caso de decisão judicial (liminar ou não) que venha a ser revogada.

Como se nota, o ente público procura executar administrativamente (por si) a restituição ao erário. Segundo o que defendemos, entretanto, o que é respaldado em decisões do Supremo Tribunal Federal, a “auto-executoriedade” prevista no artigo 46 não poderá ser realizada sem a prévia anuência do servidor, ou, no mínimo, o devido processo legal, garantindo-se a ampla defesa e o contraditório. Sem a concordância do servidor, portanto, a Administração deverá ingressar com ação judicial, ou o servidor poderá propor ação para evitar possível ato coator ilegal ou reaver eventuais valores descontados indevidamente.

As alterações recentes no entendimento jurisprudencial são vislumbradas quanto aos requisitos para a desnecessidade da restituição. Inicialmente apresentava-se como requisito suficiente a boa-fé do servidor ao receber as parcelas indevidas, pouco importando a espécie do erro perpetrado pela gestão pública. Todavia, em recente decisão tomada no Recurso Especial nº 1.537.795/CE, o Superior Tribunal de Justiça demonstrou que não basta a boa-fé do servidor quando da percepção desses valores.

Baseando-se fundamentalmente na preponderância do princípio que veda o enriquecimento ilícito, o STJ passou então a exigir ainda a presença um equívoco de interpretação legal, uma forma específica de erro da administração pública como requisito para a desnecessidade da reposição.

Dessa forma, é importante compreender a distinção que a Corte faz entre duas formas pelas quais o erro administrativo pode ser compreendido, ou seja, entre “erro procedimental” (ou stricto sensu) e “erro de interpretação legal”.

Enquanto, o erro procedimental aborda situações não-complexas, referentes a questões meramente lógicas (por exemplo, erros simples de cálculo ou na digitação de valores), o erro de interpretação ocupa-se de atuações e procedimentos mais complexos, que exigem da Administração Pública uma análise aprofundada sobre um assunto específico.

Seguindo tal entendimento, os tribunais têm proferido decisões no sentido de exigir a presença de ambos os requisitos para a inexigibilidade da reposição. Ou seja, para que o servidor não precise restituir os valores é necessário que os receba na aparência de serem devidos, bem como que o ato que originou o pagamento indevido seja anulado, revogado ou revisado em vista daquele equívoco de interpretação legal por parte do órgão público.

Vale recordar, aliás, que idêntico posicionamento ao que o STJ atualmente adota já era há muito reconhecido e consolidado no âmbito do Tribunal de Contas da União (TCU), que elaborou sobre o tema a Súmula 249, ainda no ano de 2007, pela qual reconhecia a dispensa da reposição de valores recebidos de boa-fé em virtude de “erro escusável de interpretação de lei”.

Assim, caso a Administração insista em realizar reposições nessas condições, estará afrontando claramente o direito dos servidores, o princípio basilar da segurança das relações jurídicas, inscrito na Constituição da República, e a confiança depositada nos atos administrativos, que possuem, via de regra, presunção de legitimidade, legalidade e veracidade.

Em quadros como estes, o servidor afetado poderá, tão logo seja notificado para que proceda ao pagamento ou sobre algum eventual desconto, manifestar-se sobre a desnecessidade da reposição, para que a própria Administração o reconheça, ou ainda propor ação judicial cabível ao caso, evitando os descontos e cobranças ou ainda para reaver possíveis valores que lhe foram descontados sem respaldo legal.

Por Igor Bueno, advogado do escritório Cassel Ruzzarin Santos Rodrigues Advogados