Denúncia anônima pode ensejar abertura de processo administrativo?

O Processo Administrativo é destinado a apurar a responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas funções ou relacionada com as atribuições do seu cargo. Dessa forma, para que seja possível a abertura do procedimento, é necessário que a Administração possua conhecimento de irregularidade envolvendo o servidor.

Existem diversas formas pelas quais a Administração pode tomar ciência dessas situações, podendo ser por meio de denúncia, representação funcional, notícias veiculadas na mídia, representações oficiais por outros órgãos públicos, entre outros.

A denúncia, um dos principais meios de comunicação, deve observar alguns requisitos para que seja aceita. Conforme disciplinado no artigo 144, da Lei n° 8.112/90, é necessário que a denúncia sobre irregularidades contenha a identificação e o endereço do denunciante, devendo ser formulada por escrito e ter sua autenticidade confirmada. Caso os fatos relatados na denúncia não configurem evidente irregularidade, o parágrafo único do referido artigo prevê a possibilidade do seu arquivamento sumário.

Entretanto, diante dos requisitos estabelecidos pela legislação para que a denúncia seja aceita pela Administração, confrontados com o poder-dever da administração de apurar irregularidades, há controvérsia em torno da possibilidade de a denúncia anônima ser apta a ensejar a abertura de processo administrativo.

O artigo 144, da Lei n° 8.112/90, está em consonância com o inciso IV do artigo 5° da Constituição Federal, o qual veda o anonimato, vedação que, segundo o Min. Celso de Mello, tem a finalidade de “permitir que o autor do escrito ou da publicação possa expor-se às consequências jurídicas derivadas de seu comportamento abusivo” (Inquérito 1975/PR).

Por outro lado, constitui poder-dever da autoridade administrativa o de apurar eventuais irregularidades que cheguem ao seu conhecimento, e que noticiem suposta irregularidade envolvendo agente público, conforme dispõe o artigo 143, da Lei n° 8.112/90.

O Supremo Tribunal Federal tem adotado o entendimento de que é possível a abertura de processo administrativo decorrente de denúncia anônima, entretanto com a realização de uma apuração prévia dessa. Insta destacar parte do voto da Ministra Relatora Cármen Lúcia no RMS 29.198/DF, julgado em 30/10/2012(DJe-233, divulgado em 27/11/2012, publicado em 28/11/2012): “Não pode a Administração, como é óbvio, instaurar o processo administrativo disciplinar contra servidor com base única e exclusiva nas imputações feitas em denúncias anônimas, sendo exigível, no entanto, conforme enfatizado, a realização de um procedimento preliminar que apure os fatos narrados e a eventual procedência da denúncia”.

Nesse sentido, também no Superior Tribunal de Justiça há entendimento favorável a abertura de processo administrativo baseado em denúncia anônima, desde que com apuração prévia dessa, conforme os precedentes: MS 10419/DF, Min. Rel. Alderita Ramos de Oliveira, Terceira Seção, julgamento 12/06/2013, DJe 19/06/2013; MS 7415/DF, Rel. Min. Og Fernandes, Terceira Seção, julgamento 11/09/2013, DJe 25/09/2013; REsp 867666/DF, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, Julgamento 27/04/2009, DJe 25/05/2009.

Somando-se a isso, no caso de dúvida sobre a veracidade das informações sobre as quais teve ciência, deverá a Administração optar pela apuração. Esse é o entendimento de Couto (2014, p. 130), o qual leciona que “[…] se a autoridade tiver dúvida entre arquivar e promover a apuração, deve optar por promover a apuração, pois, nessa fase, a dúvida resolve-se em favor da sociedade e não em favor do acusado”.

Ainda, conforme assinala o Manual da CGU (BRASIL – CGU, 2016, p. 42) “[…] não é condição indispensável para iniciar a averiguação a devida qualificação do denunciante, porquanto o que realmente importa é o conteúdo da denúncia (relevância e plausibilidade), que deve conter elementos capazes de justificar o início das investigações por parte da Administração Pública”.

Assim, segundo as correntes doutrinárias e jurisprudenciais atuais, os requisitos insculpidos no artigo 144, da Lei 8.112/90, não precisam ser taxativamente observados, por força do artigo 143, que prevê a imediata apuração dos fatos quando presentes indícios relevantes.

É que, ao aparente conflito existente entre a vedação ao anonimato e o poder-dever do Estado de apurar irregularidades, tem sido conferida pelas cortes superiores interpretação no sentido de que é possível à autoridade administrativa, apurar a denúncia anônima, através de um procedimento investigatório preliminar (inclusive na forma de sindicância), e, posteriormente, instaurar o processo administrativo disciplinar.

Contudo, como bem ponderado pela Min. Cármen Lúcia, relatora do RMS 29.198, deve a autoridade administrativa, agir com cautela no exame da admissibilidade da denúncia, evitando que sejam objeto de apuração aquelas com intuito meramente difamatório, injurioso e vexatório, desacompanhadas de elementos mínimos que evidenciem conduta inapropriada ou ilegal, e buscar outros elementos que corroborem a denúncia, confirmando a autoria e a materialidade das infrações, para, só então, instaurar o processo administrativo disciplinar.

 Por Aracéli Rodrigues e Daniela Mattos, escritório Cassel Ruzzarin Santos Rodrigues Advogados. 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

COUTO, Reinaldo. Curso Prático de Processo Administrativo Disciplinar e Sindicância. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 2014.

BRASIL – CGU. Manual de Processo Administrativo Disciplinar. Brasília, 2016. Disponível em: <http://www.cgu.gov.br/Publicacoes/atividade-disciplinar/arquivos/manual-pad.pdf>. Acesso em: 22 jul. 2016.